Naquele dia tinha tempo. Sentou-se frente ao espelho e observou o dia anterior.
Tinham-lhe dito imensas coisas. Velhas cantigas com que se embalara durante anos. Sabia-as de cor mas recusava-se a vê-las. Talvez não gostasse de deitar-se sempre com ela. Talvez estivesse demasiado cansada de todos os seus labirintos, de todas as suas formas. De vez em quando um pouco de alegria, vários dias sentidos, algumas noites tranquilas. De vez em quando, uma poesia, feliz realização da alma. Quase sempre, aquela nostalgia, quase sempre, aqueles passos perdidos.
Se olhasse bem descobriria que estava ali, que tinha tudo para ser feliz...
Que mais poderia desejar?
Um amor constante, sem quebras de intensidade?
Uma casa onde soubesse sempre onde encontrar a tesoura e as agulhas?
Será que isso poderia dar-lhe o tal final feliz?
Por quanto tempo? Até a tristeza doer demais e voltar a recolher-se no leito da saudade?
Sabia bem que nenhuma destas coisas poderia fazê-la feliz. Sabia que todas as pequenas tentativas e investimentos que fizera ao longo dos anos, tinham sido apenas grandes desilusões. Mas a culpa era dela. Acreditara demais. Pintara os dias ao sol com pinceladas de vida quente. Ao sabor do caleidoscópio, construíra as telas de um mundo diferente. E por acreditar nele com a sensibilidade da alma, concedera demasiados benefícios da dúvida. A única coisa que a salvou de um abismo ainda maior, foi o facto de não se ter deixado magoar fisicamente. Já tivera mais certezas quanto a isto mas, de qualquer modo, o que está feito está feito. Neste ponto não pode voltar atrás.